Um mar de pessoas em direção ao mar
As crianças gritando mas sem festejar
O dia de alegria de repente decidiu acabar
-
10:15
Andava por aquela rua carregando meu casaco na mão. Sabia
que o clima na França era mais frio do que estava acostumado, mas tinha esquecido
das pessoas que na rua aquele dia faziam um trabalho muito mais eficiente do
que os aquecedores dos bares onde visitei.
O som que se ouvia era de conversas gritadas, de uma música
bem alta em um francês inteligível (e francamente pra mim qualquer francês era
inteligível) mas aproveitava mexendo os ombros timidamente, fingindo qualquer
costume, enquanto tentava atravessar a multidão.
Muitas crianças de mãos dadas com seus pais, boca suja de
algodão doce e aquele sorriso inocente exclusivo das crianças que diz “esse é o
melhor dia da minha vida” mesmo nas tardes mais nubladas.
-
10:19
Não muito longe, há duas quadras dali, ele olhava pro seu
chaveiro. Ou era para os dedos que insistiam em tremer? Ou será que o chaveiro e
o dedo eram apenas um ponto fixo pra descansar os olhos já que a mente
experimentava fatiga de tanto exercício?
Tinha que dar certo, mesmo se desse errado.
Está longe de mim tentar descobrir o que o motivara a estar
em sua casa naquela noite, talvez uma falta de vontade de se integrar com os
outros, talvez algum trauma de multidões tenha ativado dentro de si a vontade
de sair de casa naquele estado.
Ele estava nervoso, mas decidido. Uma voz parecia lhe dizer volta
pra cama, mesmo depois de tantos planos, mesmo que ele não tivesse vontade de
levantar no outro dia. Mas ele cometeu um engano que na verdade é mais comum do
que imaginamos: confundiu prudência com nervosismo e decidiu seguir em frente.
Sentado no banco do motorista, não olhou mais para trás.
Se desse certo, se desse errado, não daria mais para se
apegar aos pensamentos do que fica pra trás.
-
10:25
O primeiro grito chegou nos meus ouvidos como um eco
distante, me lembrou as vezes quando estamos escutando música em um lugar
barulhento e não conseguimos decifrar exatamente se o som estranho que aparece
vem da música ou das pessoas do nosso lado.
Já no segundo grito, que demorou menos que o tempo de olhar
pra trás, todos os meus pelos arrepiaram, as pernas pareceram me enganar e eu tinha
a sensação que o que estava por vir mudaria a minha vida.
Que sensação idiota essa, tenho que confessar. A minha vida pouco
importou comparado com o que aconteceu depois.
De longe se via um caminhão branco, rápido demais para não
saber que a rua estava fechada e entupida de gente festejando.
-
10:32
PFFFF PFFF PFFFFF
Ele passou pela primeira aglomeração
Lembrou vagamente de um jogo de boliche
Mas a adrenalina não deixava os pensamentos terem forma
PFFFF PFFFF
Agora é tarde pra parar
PFFFF PFFFF PFFF
Ele não quer parar. E num mundo de obrigações e
expectativas, um mundo de desilusão e falta de compaixão, o querer é mais que
suficiente pra te fazer errar. Pela primeira vez o controle era dele e ele
apertava o botão que quisesse.
Apertou, o acelerador.
-
10:35
No tempo que ele chegava perto da segunda multidão (a mais
volumosa e a que eu tinha tentado me infiltrar no começo da noite) eu já estava
em direção a areia. Pensava que o quer que estivesse tentando nos matar, não me
pegaria se eu estivesse dentro d’água. No entanto tive tempo de marcar na minha
memória cenas que eu poderia dizer serem de filme de terror, mas os filmes de
terror não conseguem captar o silencio do pânico.
Digo silencio não porque todos estavam quietos, aliás
escutavam-se mais alto ainda os gritos, crianças e adultos, alguns sendo
atingidos e descartados pelo chão formando uma trilha de sangue e partes de
corpo, uma trilha de memórias desperdiçadas e sapatos rasgados, uma trilha de
vida que não mais é viva.
Mas existe um silencio no meio do pânico, um silencio sutil
e quase imperceptível se você não estiver prestando bastante atenção. É o
silencio que grita uma indignação e todos parecem sentir ao mesmo tempo, uma
incredulidade com o que seus olhos veem. É a certeza de que não há limites para
um homem atormentado ou a dúvida do que será da sua vida agora que presenciou o
inimaginável.
-
10:57
Já de volta a rua, agora aglomerada de policiais, vi o que
me lembrou das fotos de guerra que estampavam as páginas dos meus livros de
história. Aparentemente tinha acontecido uma troca de tiros com a policia, e o
motorista do caminhão estava morto, junto com incontáveis corpos espalhados pela
rua. Todos choravam, alguns pelos olhos, outros pela boca. E quanto mais eu
escutava os gritos de turistas perdidos, o choro de mães desoladas, o desespero
de filhos abandonados, mais eu desejava estar bem longe dali.
Fui andando, a
procura de alguém que de alguma forma eu pudesse ajudar, e no caminho escutei
uma francesa que vivia em Nice, falando com uma voz quase de professora um
inglês arrastado que dizia: “O medo que ele tentou colocar na vida dos que
passavam aqui hoje não pode ser maior que a vontade de se unir de um povo
traumatizado. Enquanto o mal trabalha solitário, a nossa força aparece quando
estamos juntos. Não tenho raiva, porque foi ela que motivou ele a sair de casa
hoje. Não tenho medo, porque medo nos impede de compreender e não há reação eficaz
sem compreensão.” Eu escutava isso com uma mistura de admiração e julgamento quando
um senhor gritando disse que precisava de alguém pra ajudar a carregar o soro
de uma vitima que estava sendo socorrida e transferida pra ambulância.
Minhas
pernas não só voltaram com força total, elas pareceram correr sozinhas até o
soro que atravessou a minha mão ao tentar alcança-lo. Tentei mais uma vez. Nada.
Olhei pro senhor que continuava gritando. Falei com ele. Não me escutava. O
toquei mas ele não me sentia. Agora no meu quarto finalmente percebo que não há
como ajudar apenas por querer, não se pode sentir aquilo que não acreditou e
nem julgar uma vida que não viveu. O pensamento te leva até a fronteira entre o querer e fazer, meu desejo é apenas atravessar.
(Sobre Nice, 2016)